Ouço José T., ex-colega de Santo Américo e amigo desde a infância, perguntar-me: “Lembra-se da Cristina, filha da Adelaide?” Sim, eu me lembro, e muito bem, por sinal. Tínhamos 15 anos de idade e estávamos numa festa do Colégio Madre Alix, em São Paulo. Cristina era uma menina, também de 15 anos, que estava acompanhada por sua mãe e nós, moleques, não sabíamos dizer qual das duas era mais bela.
Da
mesma forma, eu me lembro da Candinha, da Cida, da Regina, da Marli e de tantas
outras...! Eram as meninas por quem nossos corações de adolescentes batiam mais
rápido e que povoavam nossos sonhos.
“Encontrei-me
com a Silvana “ conta-me Peter, “A irmã mais nova da Roberta, lembra-se delas?”
– pergunta-me. Sim, claro, como poderia esquecer-me da Silvana, afinal, essa
chegou a ser, por três ou quatro meses, minha namorada e eu já estava na
Faculdade. Além disso, ela era colega de classe de minha irmã, estava quase
permanentemente em casa... “Pois é...” prossegue Peter, “Ela está um caco.
Parece uma velha decrépita!”. Ele podia muito bem deixar de dizer essa última
frase. Podia deixar que eu visse a Silvana, em meus pensamentos, como ela era nos
anos sessenta, loira, alegre, bela, bailarina (ela era do Corpo de Ballet do
Municipal de São Paulo), sempre disposta a tudo.
Bobbynho,
outro ex-colega, surge com a ideia: “Vamos organizar um encontro de nossas
ex...”
Aviso
de imediato que não comparecerei.
Não
quero reencontrar nenhuma delas. Quero poder continuar a sonhar c om elas, a
lembrar delas exatamente como eram naqueles idos tempos. Assusta-me pensar que
elas, assim como nós, estão com mais de sessenta anos, terão suas fisionomias
marcadas não apenas pela passagem do tempo, essa dimensão inexorável, mas
também pelos dissabores e desencontros da vida. Elas também terão envelhecido,
estarão completamente diferentes externamente e, com grande probabilidade,
também internamente. Aliás, com certeza, eu não reconheceria nenhuma se
cruzasse com elas na rua. Prova disso ocorreu cinco anos atrás, na loja de minha
mulher, quando lá estava fazendo compras uma respeitável senhora que
cumprimentei. Só depois, ao acertar as contas da féria do dia, vi o cheque que
ela dera. Era a Cristina, irmã de um amigo de infância, em Taubaté, e que, no
início da década de sessenta, chegou a balançar fortemente meu inexperiente
coração de adolescente. E ela, por sua vez, também não me reconheceu.
É
completamente diferente com aquela que se tornou minha companheira de vida, a
Nicole. Esta , para os meus olhos, não
mudou absolutamente nada. Continua a mesma morena de olhos verdes que eu
persegui desde os dois anos de idade, desde que nossas avós ficavam tricotando
e conversando em francês num banco do Jardim Trianon enquanto nós dois
andávamos de velocípede. Ela tinha um velocípede igualzinho ao meu, só que
vermelho, enquanto o meu era azul. E eu forçava-a a correr e a fazer curvas
fechadas só para vê-la cair. “Sua calcinha é cor-de-rosa!” gritava eu, rindo
quando ela se esborrachava de pernas para o ar. Voltei a encontrá-la – de longe
– em Guarujá, em uma ou duas férias de verão, na Rua México. Havia uma
construção ao lado da casa onde ela estava e eu mais um bando de outros
moleques ficávamos andando de bicicleta pelos andaimes. Quando lembro disso,
hoje, chego a sentir um frio na barriga... Que irresponsabilidade! Poderíamos
ter despencado fatalmente! Mas éramos
moleques, não tínhamos a menor noção do perigo. E ela confessou-me, mais tarde,
que chegava a ficar torcendo para que caíssemos. Principalmente eu, que era o
mais maluco da turminha. Depois, então já com dezesseis anos de idade, voltei a
vê-la tomando chá no Clube Inglês, em São Paulo, acompanhada de sua avó. Lembro
que ela tinha, naquela tarde, a fisionomia preocupada e triste. Não fosse eu
tão tímido, teria ido perguntar-lhe o que a estava afligindo. Dois ou três anos
mais tarde, encontrei-a comprando cigarros na padaria do Guarujá. Nessa
ocasião, já mais treinado nas coisas da vida e menos tímido, decidi segui-la.
Ela estava num Karmann Ghia e eu também. Só que eu tinha um motor Porsche 2.0 e
estava certo que ela jamais conseguiria fugir de mim. Porém, o carro dela
também era equipado com o mesmo motor que o meu e eu não consegui ultrapassá-la e obrigá-la a parar como
planejava. Decepcionado, vi-a entrar no Hotel Jequiti... Daquele dia até julho
de 1971, não a vi mais e nem notícias dela eu tive. Então, numa operação de
transporte de soldados para o 4º BOC, em Guarujá – eu era piloto da FAB, na
ocasião e estava encarregado de levar de helicóptero, da Base Aérea até o 4º BOC quase trinta soldados, o que implicava
em mais de três vôos – eu a vi tomando sol na areia da praia de Guaiúba.
Reconheci-a de imediato. Ela acenou alegremente e é claro que não acenou para
mim, mas sim para o helicóptero, pois teria sido impossível que me reconhecesse
com o visor escuro do capacete abaixado. Retribuí o aceno e, na volta, já com a
aeronave vazia, fiz um rasante sobre ela e dei duas voltas em cima dela,
mostrando claramente que era para ela que fazia aquelas manobras. E planejei
meu ataque... Naquela época, nosso comandante tinha feito um acordo com um
hotel de Ilhabela, o Hotel Mercedes, segundo o qual nós, oficiais da Base
Aérea, teríamos hospedagem gratuita no fim-de-semana, com direito a
acompanhante, desde que fôssemos de helicóptero e permanecêssemos com a aeronave pousada no
heliponto do hotel. Esse acordo era de
total interesse para nosso comandante, que na época tinha um “cacho” com uma
atriz global e, pelo menos uma vez por mês ia passar não só um fim-de-semana,
mas uma semana quase inteira na Ilha. Assim, como era uma sexta-feira e eu
sabia que o comandante não poderia se ausentar da Base pelos próximos dez dias,
o Jet Ranger estaria à minha disposição. Terminada a missão de transporte eu o
pegaria e pousaria diante da mulher objeto de meus sonhos desde a infância e eu
duvidava que ela não aceitasse o convite... Porém, ao pousar na Base, antes
mesmo de falar com o comandante sobre meus planos, este mandou um sargento me
chamar. “Você terá de ir a Brasília agora”, disse-me ele. ”o Ministro
Andreazza, que está em Santos, foi chamado pelo Presidente com urgência e você
é o único piloto capacitado a levar o HS até lá”. Não havia o que contestar e,
no máximo eu pude maldizer a hora em que decidi me capacitarpar a pilotar o HS
no Esquadrão de Transporte Aéreo... Meus planos foram por água abaixo e só
voltei a encontrá-la em janeiro de 1978. Contudo, dessa vez, eu estava decidido
a não mais deixá-la escapar e, apesar de ambos estarmos casados, cada um com
sua vida, deixamos tudo para trás e começamos uma vida nova, cheia de amor,
vida esta que persiste até hoje.
Os
anos passaram, eu sei. Mas para meus olhos, ela continua a mesma, não se deixou
marcar pelo tempo.
Eu,
porém, mudei. Não existe mais aquele Ryoki cheio de vida, alegre, disposto a
tudo, cheio de energia. Hoje estou preso a duas muletas e, para andar na rua
necessito de uma cadeira de rodas. Entristeci, eu sei. O brilho que havia está
opaco, a disposição sumiu...
Mas
ainda estou vivo e, enquanto houver um resquício de vida em meu ser, enquanto
meu coração ainda bater, haverá de bater por ela, a minha Nicole, a menininha
de calcinha cor-de-rosa que eu encontrava nas manhãs de sol no Jardim Trianon.
Fonte: Ryoki Inoue
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